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"Acho que somos considerados pessoas impuras, sujas"

 

Ativista na luta contra a Aids, o argentino Jorge Beloqui aderiu à causa após descobrir, em 1989, que era portador do vírus HIV. Atualmente com 65 anos, o militante foi um dos fundadores da ONG Pela Vidda (Valorização, Integração e Integridade do Doente de Aids) em São Paulo e defende que os portadores do HIV, assim como os grupos mais vulneráveis ao vírus, merecem não só direito à saúde, mas também “o direito contra a discriminação”. Em paralelo a seu ativismo, Jorge Adrian Beloqui leciona no Instituto de Matemática e Estatística da USP. Confira, a seguir, uma entrevista concedida pelo professor ao VHIVA.

Há quanto tempo você é portador do HIV e como contraiu o vírus?

Meu primeiro exame positivo foi em 1989 e eu acho que eu peguei em relações sexuais com homens, porque é a única possibilidade que eu tinha.

 

E como foi você receber essa notícia?

Foi paulatino. Primeiro que eu achava possível, pois eu tive relações sexuais com homens que depois vieram a falecer. Então, era possível. Eu fui testado sem meu conhecimento para uma cirurgia e quando tive alta disseram que eu tinha HIV.

 

Então foi um tipo de choque para você?

Como eu disse, eu achava possível, porque tinha transado sem camisinha com caras que vieram a falecer. Eu tinha decidido que não queria testar, porque não tinha vantagem alguma naquela época quanto a tratamento. [A descoberta] foi meio difícil sim, porque [o exame] aconteceu à minha revelia. Mas, de qualquer jeito, eu estava me convalescendo daquela cirurgia. Então, eu disse: “Vou me ocupar primeiro disso”. Aí, fui falando com algumas pessoas, como com o cara que tinha sido meu namorado e com os que eram meus parceiros sexuais.

Conversou com a sua família sobre isso também?

Não, isso demorou, porque minha família toda mora lá na Argentina. Eu não queria preocupá-los estando distante e decidi não falar. Inclusive, agora, eu tenho umas tias para quem não falei, não sei se elas sabem. Mas não falei senão elas vão se preocupar.

 

E há quanto tempo você mora aqui no Brasil?

Desde 1975.

 

Antes do diagnóstico, você tinha uma relação próxima com pessoas soropositivas ou o HIV fazia parte de uma realidade mais distante?

Eu conhecia pessoas [soropositivas]. Inclusive, meu primeiro amigo mais próximo que veio a falecer de Aids foi em 1986. Mas, alguns [conhecidos] falaram [que eram portadores do HIV] e outros não falaram para mim. Não é uma coisa que a gente perguntasse.

 

Hoje, você acha que o preconceito é o pior tipo de violência com os portadores do HIV?

Eu acho que tem preconceito de diversas índoles. Um se manifesta mediante uma censura moral, como: “Ah, você pegou HIV porque você é safado”. [Por outro lado], eu já fui rejeitado por pessoas com quem eu queria namorar ou que até me propuseram namoro. Foi engraçado isso. Eu me lembro que transei com um cara, com camisinha, e depois ele perguntou: “Você namoraria comigo?”. Eu disse: “É, tentaria, mas eu tenho uma coisa pra te falar. Eu tenho HIV”. E ele falou: “Como? Você está brincando”. “Não, verdade”, [confirmou]. E ele disse: “E você não me falou? Você foi muito baixo”. Aí, eu cortei, não quis mais saber.

Então, isso acontece; acho que acontece bastante. Acho que na parte do relacionamento sexual o preconceito é bem importante, mesmo que transe com camisinha, mesmo que saibam que tem carga viral indetectável – a transmissão quase não existe nesses casos, ou não existe. Acho que a gente é considerado uma pessoa impura, uma pessoa suja. Eu me lembro daquele cara que falou: “E você não me disse [que é portador do HIV], devia ter falado”. Por que eu devia ter falado? Eu tenho asma e não falei que tinha asma.

 

Hoje o vírus é indetectável nos seus exames?

Há muito tempo.

 

Qual foi o maior desafio que você enfrentou depois de descobrir que havia contraído o HIV?

O primeiro é partilhar com outros, porque às vezes você é objeto de perguntas, de curiosidade e de afirmações. Mas, fui vencendo isso com o tempo. Além do mais, sempre tive bons amigos, bons colegas aqui [na Universidade] que quando vieram a saber me deram apoio. Foi tudo muito bom neste sentido, não posso reclamar. Mas, é claro, é uma notícia que é difícil de ser partilhada.

 

Há algum ponto positivo que veio com a descoberta de que você é portador do vírus HIV?

Eu me envolvi na luta contra a Aids, acho que isso foi legal. [Pedimos] o direito ao tratamento, direito à assistência, direito à prevenção e direito à saúde. Também o direito contra a discriminação com a pessoa que tem o HIV e com os grupos que são mais vulneráveis ao vírus, como os homossexuais, a população transgênero, a população privada de liberdade, trabalhadores e trabalhadoras comerciais do sexo e usuários de drogas. Essas são populações sobre as quais pesa muito preconceito.

Então, nesse sentido, acho uma coisa importante porque coloca em questão a desigualdade ideológica que existe dentro da nossa sociedade. Por exemplo, pessoas privadas de liberdade têm direito à saúde; é a mesma coisa com trabalhadores e trabalhadoras comerciais do sexo. Com o ministro [da Saúde Alexandre] Padilha, a campanha dirigida para certos públicos, mais vulneráveis, teve censura. Isso mostra a dificuldade de você garantir direito à saúde de populações discriminadas num país como o Brasil, que posa de democrático.

 

Como é sua relação com os medicamentos que precisa tomar? Eles já te causaram efeitos colaterais?

Eu sofri alguns efeitos colaterais. Tive um pouco de lipodistrofia, mas consegui superar usando preenchimento com metacrilato. Faço exercícios também, que é uma coisa que todo mundo tem que fazer depois da melhor idade, sobretudo quem faz um trabalho sedentário.

 

Quando você contraiu o vírus os medicamentos eram acessíveis?

Eu comprei AZT durante três meses e, quando eu comecei a usar, a terapia era com um único medicamento. [Atualmente], os medicamentos são mais acessíveis e a terapia é tríplice, com muito maior eficácia.

 

Como foi tornar público no seu ambiente profissional que você é soropositivo?

Aconteceu assim: Eu estava precisando de uma terapia dupla na época e observava que várias empresas forneciam tratamento para seus funcionários que tinham o HIV. Achei que a Universidade tinha que oferecer também. Por outro lado, escrevi para o Município solicitando esse acesso. Aí, fiz uma carta oficial à reitoria, mas ela tem que passar pelo chefe e o chefe encaminha para o diretor. Tive todo o apoio aqui dos colegas, quase todos eles fizeram um abaixo-assinado para me apoiar. Mas, no Conselho Universitário, o reitor sempre dá um jeito de não abordar esse tópico. Felizmente, depois arrumei por outra via.

 

Você chegou a ficar doente por causa do HIV?

Não.

 

Você considera importante que os soropositivos conversem com seus parceiros sexuais e esclareçam, logo no início, que são portadores do HIV?

Não, eu acho que é uma decisão muito pessoal e acho que todo mundo sabe que o HIV está aí. Eu, na verdade, falo quando acho que quero partilhar. Acho que tem que transar com camisinha e tudo isso, e agora se comprovou que a carga viral indetectável também não transmite [o vírus HIV]. Mas, não acho que tem nenhum motivo para se falar disso.

 

Qual o papel que acredita que as ONGs tenham para os soropositivos?

Eu acho que as ONGs seriam um movimento da sociedade civil. Então, elas são uma referência para a luta pelos direitos, por exemplo. Quando a gente entrou, em 1996, com o pedido para a terapia tríplice foi através de ONGs, advogados de ONGs. Também é um local para [tratar de] outros problemas, como a situação trabalhista de pessoas com HIV.

 

Você foi um dos fundadores da ONG Pela Vidda em São Paulo, certo? Como foi esse processo?

Tinha um ex-namorado meu que morava no Rio [de Janeiro], e ele estava envolvido com uma ONG que havia sido fundada recentemente, que era o Pela Vidda do Rio. Eu conheci um dos fundadores, o Herbert Daniel, para o qual eu tinha feito campanha quando ele foi candidato a deputado no Rio, porque eu morava lá. Aí, a gente se envolveu e o pessoal decidiu fazer um núcleo do Pela Vidda aqui em São Paulo. Foi essa a fundação.

 

Atualmente você está ligado ao Grupo de Incentivo à Vida, certo? Você pode falar um pouco sobre essa ONG e seu trabalho lá?

Também é um grupo pelos direitos de portadores e das populações vulneráveis ao HIV. A diretoria é composta só de pessoas com HIV e faz um trabalho com assistência jurídica. Eu me ocupo mais de ativismo e da [parte relacionada à] prevenção. Têm algumas novas tecnologias de prevenção para o HIV, como o uso da PrEP [Profilaxia Pré-Exposição], da Profilaxia Pós-Exposição, [a questão] de saber que pessoas com carga viral indetectável também não transmitem [o HIV], a circuncisão masculina e outras estratégias de redução de risco. A gente se ocupa de tentar divulgar esse conhecimento, que é relativamente novo e que, por outro lado, se juntou ao [uso dos] preservativos. Falar de formas de prevenção alternativas ao preservativo sempre levanta muitas controvérsias, mas, felizmente, a gente tem essas possibilidades.

 

O que você falaria às pessoas que acabaram de descobrir que são portadoras do HIV?

Eu acho que tem que procurar tratamento e que a vida continua. Não pense que vai morrer tão cedo (risos). Eu acho que as pessoas têm que continuar com seus planos, incorporando o tratamento à sua realidade.

 

Gostaria de acrescentar algo que não foi perguntado?

A única coisa que queria dizer é que acho que o governo, principalmente o federal, deveria ter melhores canais de diálogo com a sociedade civil, com as ONGs e com as pessoas com HIV. E, também, o financiamento para atividades [voltadas aos soropositivos] deveria ser ampliado e desburocratizado.

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